Era suposto ser uma terça-feira normal, como todas as outras. Levantar cedo, assistir às aulas na faculdade e dar o dia por acabado... Mas não.
O dia não acabou por ali. Depois de umas horas de estudo, segui rumo a Setúbal, ao encontro do Ricardo, um colega de faculdade que também nutre um gosto especial por automóveis. Tão especial que tem na sua posse um carro muito bem conhecido pelos entusiastas, para muitos, um ícone do mundo automóvel, especialmente no que toca a preparações automóveis e à cultura automóvel japonesa, o Toyota Corolla AE86.
O AE86 do Ricardo não está muito alterado a nível estético, até porque, e respeito-o imenso por isso, prefere resolver eventuais problemas que vão surgindo, afinal, a idade não perdoa, não é? Contudo, a força de vontade faz das suas, pelas fotos verão que existem pormenores que não são comuns aos AE86 normais. As jantes Rota Grid V, que, para mim, ficam no ponto, e a mala TRD com asa integrada, que tornou a traseira muito mais agressiva e mais interessante do que é originalmente. Mas chega de falar da estética do carro, por esta altura o Ricardo já estava à minha espera para rumarmos a um lugar muito especial, quer para ele, quer para qualquer aficionado automóvel que resida nas redondezas, a Serra da Arrábida.
Mal deu à chave, notei um ronco vigoroso, mas o Ricardo garantiu-me que o motor não está mexido, que continua como saiu de fábrica e com um trabalhar muito certo. Afinal, sou eu que não estou já habituado a um bom oldschool. O som vinha da linha nova, que foi colocada devido ao mau estado da anterior, complementada com uma panela final da Magnaflow. Babetes, onde estavam eles?... Pronto, lá me controlei e seguimos caminho.
A sair da Av. Luísa Todi e a entrar na Serra comecei a reparar que a suspensão do Hachi (como ele carinhosamente o apelida) parecia muito rija, sem ser desconfortável... Malandro, a suspensão está mexida e não dizia nada! Depois de algumas curvas, virámos à direita, o objectivo era chegar à Sétima Bataria do Outão e... De repente, estávamos a subir a rampa da Arrábida em modo TOUGE! Ainda pensei que estivesse a passar Running in the 90's no rádio, mas não o vi no devido sítio, e olhei para o Ricardo: "Epah, já sabes como é!...", pois sabia, sei e saberei! É impossível não ganhar um ritmo mais vivo nesta estrada, ainda para mais com o cocktail de emoções que é este AE86... Curva, contra-curva, chassis muito neutro e, aposto que se houvesse um copo com água num porta copos, o mesmo não entornaria, mas isso já começaria a ser demasiado cliché... Ou não! Quando dei por mim, passámos o acesso da Bataria, o Ricardo queria um pouco mais de acção e eu, claro que não neguei, afinal, estava a ser bem divertido. O ritmo lá abrandou e voltámos atrás, entrando na Bataria.
Pedi ao Ricardo para ir posicionando o carro de forma a começar a sessão. Ao mesmo tempo que as instalações da Bataria deslumbram pelo seu passado e obra em si, esse sentimento também traz tristeza, por não ver um ponto turístico destes recuperado, dada a vista espectacular para Tróia e baía de Setúbal, assim como para a restante Arrábida. Caros potenciais investidores, avancem! Um café car-related faria sucesso! Adiante...
Terminada a sessão junto ao edifício, decidimos descer para a zona dos canhões, o Sol estava a pôr-se e, com aquela vista, é algo que não se deve perder. Aproveitei os últimos rasgos de Sol para tirar algumas fotos ao interior do carro e pedi ao Ricardo para me falar sobre os detalhes do interior. A manete da TRD, foi-lhe oferecida pela namorada que, aposto, tem uma paciência de santa, como a minha, para nos aturar neste hobby, nestes pequenos prazeres que temos, certo Ricardo? O volante, é um must, como irei explicar mais à frente. Os bancos, espectaculares. O rádio, fugiu, afinal, quem quer música quando a linha de escape já faz um belo trabalho? O pormenor de se regular a intensidade das luzes do quadrante através do anel que envolve o manípulo das luzes, delicioso. E agora chegamos ao detalhe mais... pesado.
Se já viram as fotos, certamente terão reparado numa coleira na manete de mudanças. É nos pequenos pormenores que guardamos os maiores significados, de facto. Esta coleira pertencia ao Ice, quem era ele, perguntam? Podemos dizer que era um irmão, não de sangue nem raça, mas de alma. Este cão acompanhou o Ricardo durante muito tempo da vida dele, e eram praticamente inseparáveis. Infelizmente, faleceu o ano passado e, desde então, o Ricardo anda sempre com a coleira dele no Hachi, como sinal de respeito e lembrança dos bons momentos passados. É um símbolo, não direi triste, mas de força, uma espécie de aliviador de stress, confiança e, sobretudo, companhia.
Passado este momento, ainda acabei por dar uma de acrobata e subir a um edifício para tirar as duas últimas fotos, já com o Sol posto. A minha ideia? Inspiração retrowave. O momento era apropriado. o burburinho da cidade ao fundo, a passagem do vento... É por isto que nós adoramos a Serra da Arrábida, tem um je ne sais quoi de mágico, em qualquer altura do dia ou noite... Chegou a hora de ir embora e, por isso, entrámos no AE86 e começámos a sair da Bataria.
Esperava que o Ricardo fosse fazer a descida da rampa a um ritmo mais calmo, mas, de repente, parou o carro e voltou atrás ao acesso da Bataria. Saiu do carro e insistiu que eu o levasse para Setúbal, pela descida da rampa. Quem me conhece, sabe que não fico à vontade a conduzir o carro dos meus amigos, por lhes ter uma estima enorme e um medo enorme de que algo corra mal, por qualquer motivo. Mas o Ricardo insistiu tanto e ultimou que não sairíamos dali se eu não levasse o carro. Tive de aceder ao pedido dele, pode não parecer, mas houve um pequeno sacríficio aqui... Que rapidamente se dissipou.
Houve um click logo no arranque. Creio que o Ricardo entendeu esse click, tanto que me pediu para andar mais rápido, sem medos. Desde que não lhe partisse o carro, claro! Nem eu queria... Há anos que não conduzia um carro (de 4 rodas, dado que em 2016 conduzi um Morgan 3 Wheeler, experiência que nunca irei esquecer) com uma condução tão pura e emotiva como a do Hachi. Confesso, esperava um carro nervoso, sobretudo no eixo traseiro, dado que, tal como o Ricardo bem disse: "isto não passa de um Corolla, a piada está aqui!", mas não! O chassis do Hachi é tão neutro e as sensações ao volante são tão directas que a confiança no carro é obtida quase de imediato!
A partir da primeira curva comecei a explorar mais o motor e a aumentar o ritmo e, devo dizer, para um 1.6 de 130cv... O gozo é tremendo. Há qualquer coisa de mágico neste carro a partir das 4000RPM, as vibrações aumentam, a adrenalina dispara, a concentração aumenta. Há um impacto inicial que se torna numa ligação especial, que pende muito para o natural, devo dizer. Das melhores recordações que irei guardar a fazer a descida da rampa da Arrábida, sem dúvida. O ritmo acalmou devido à presença de um carro de uma escola de condução (se soubesse, tinha tirado a carta de condução em Setúbal, os malandros vão para a serra!) e assim seguimos para o ponto de despedida. Mesmo a ritmo calmo, a atravessar a Av. Luísa Todi, sente-se um certo gozo a conduzir (e mesmo à pendura) o Hachi...
Muito obrigado Ricardo, pela confiança e pela experiência que me permitiste obter. Voltaremos a encontrar-nos neste blog quando o Hachi estiver como queres!
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